quinta-feira, 30 de julho de 2009




O Coração Vagabundo de Caetano
Paquito
De Salvador (BA)


Fui ver Coração vagabundo, documentário sobre Caetano Veloso, dirigido por Fernando Grostein Andrade, e que acompanha o cantor-compositor na turnê do disco A foreign sound, de 2004. Fui ver e curti viajar com Caetano, seu peculiar senso de humor, seus comentários sobre religião, cultura, música, enfim, assuntos acerca dos quais discorre com generosidade e poder de síntese: "eu sou do sol, quero ser lúcido e feliz".

Não é um retrato que se pretende absoluto ou historicamente detalhado; são instantes, momentos no Japão e nos EUA, dos quais se pode destacar a resposta a Hermeto Paschoal, que o chamou de "musiquinho", após Caetano ter declarado que achava a música americana mais rica que a brasileira. Caetano usa o próprio discurso de Hermeto para desenvolver o seu raciocínio de maneira brilhante. É o que ele mesmo já chamou de "dança da inteligência". Não é pra, simplesmente, se concordar com o que ele diz, mas pra se pensar sobre.

Há instantes engraçados, como quando ele se vê diante de uma sobremesa japonesa que receia comer, por não gostar no aspecto, e há a conversa com um monge budista que diz gostar da canção Coração vagabundo, que dá título ao filme. Me interessa falar desta música, lançada em 1967, antes da explosão tropicalista, e referida quarenta anos depois neste filme, não por acaso.

Coração vagabundo, a canção, aparentemente uma bossa-nova tardia, é um samba curto que sintetiza o percurso de Caetano: anúncio e prenúncio do que viria a seguir na sua obra, por conta dos versos iniciais - "meu coração não se cansa/ de ter esperança/ de um dia ser tudo o que quer"- e finais, "meu coração vagabundo/quer guardar o mundo em mim". Não só a "lembrança de um vulto feliz de mulher", não só a procura romântica do objeto amoroso único, tema constante das canções da bossa-nova, mas a apreensão da complexidade das coisas do mundo e as utopias possíveis, mais amplas que as utopias da esquerda tradicional. O tropicalismo quer abraçar e guardar o mundo e o Brasil, por isso une o aparentemente inconciliável, bossa-nova e iêiêiê, cafonice e sofisticação, na ânsia de apreendê-lo. Como ele mesmo antecipou no texto para o LP pré-tropicalista de Gil: "que se coloquem em outro nível as relações de nossa música com a realidade. (...) prefiro descobrir e ressaltar que a verdade mais profunda da beleza do seu trabalho está no risco que corre de descobrir uma beleza maior: a capacidade de criar uma obra íntegra, assumindo o Brasil inteiro".

O ponto de partida foi todo um raciocínio de Caetano em cima das lições de João Gilberto e da bossa-nova, o que fez dele um caso único de artista que pensou a música popular. Em Coração vagabundo, ele oferece uma alternativa existencial distinta da do lirismo bossa-novístico, algo que vai desenvolver também em canções posteriores. A Inútil paisagem, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, tornar-se-á a Paisagem útil, em suas mãos. As Janelas abertas de Tom e Vinicius, "para que o sol possa vir/ iluminar nosso amor" tornar-se-ão "as portas que dão pra dentro" e "janelas pra que entrem/ todos os insetos" de Janelas abertas número 2, de Caetano. E Saudosismo, deste último, relê a Fotografia, de Tom, e cita Lobo bobo, de Lyra e Bôscoli, e A felicidade e Chega de saudade, ambas de Tom e Vinicius.

Se a pós-modernidade prevê a falência das utopias, Caetano é moderno, pois canta "não tendo utopia/ não pia a beleza também" em Love love love. O projeto estético, portanto, comporta uma ética, "um acorde perfeito maior/ com todo mundo podendo brilhar no cântico" de Muito romântico. E há a crença na nossa identidade como algo que pode interferir nos destinos do mundo, apesar e por conta de nossa diferença: "absurdo, o Brasil pode ser um absurdo/ até aí, tudo bem, nada mal/ pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/ o Brasil tem ouvido musical/ que não é normal", também de Love love love.

Todo esse vasto universo, no entanto, pode ser visto como desdobramento de Coração vagabundo, em sua simplicidade cristalina, com o que a canção ambiciona - "ser tudo o que quer"- e persegue - "guardar o mundo". As palavras "tudo" e "mundo" abrem prováveis e improváveis portas e janelas, pela variedade, conjugada à unidade, do que significam.

A obra, a vida. Desde que apareceu no cenário da cultura, Caetano dá muitas entrevistas, discute, se expõe, movimenta-se. Até hoje é assim, e assim foi, como quando teve o blog Obra em progresso, antes de lançar o recente Zii e Zie: aos 66 anos, o artista respondia sempre a todos, e estava atento aos que dele discordavam. Da Bahia, onde há um bolsão de resistência, roqueiros iniciaram um diálogo. Nos dois últimos discos e shows, se fez acompanhar por uma banda de rock, com integrantes mais jovens, oriundos do underground carioca. O coração, portanto, continua vagabundo, e os desafios ainda maiores, num Brasil/mundo cada vez mais fragmentado e partido.

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