sexta-feira, 28 de março de 2008

Enquanto isso com nossos "hermanos"...

Depois de semanas de paralisação das atividades rurais, resta muito pouco à Argentina: os supermercados não têm carne, frango, pão ou leite. Nas ruas, quase não se vê trânsito. Nos campos não se vê os implementos de ferro usados para arar a terra, caminhões, lavradores trabalhando (já que estes estão bloqueando as estradas). Nas cozinhas do país não restam panelas (que estão sendo usadas em protestos noturnos, tanto nas praças do interior quanto nas ruas da capital). Nas granjas quase não restam galinhas - as quais vêm morrendo às centenas devido à crise no abastecimento de seu principal alimento, o milho. E no Ministério da Economia, quase não há ministro (nos jornais e nas rádios, a única coisa que se discute quanto a isso é a data exata em que o jovem Martín Lousteau deixará seu posto). Hoje, as únicas coisas que não há dificuldade para conseguir é notícias e confrontos, incerteza e aquele medo que começa a crescer quando as coisas deixam de ser previsíveis.

Os motivos de tamanho alvoroço têm uma base evidente: o aumento nas retenções financeiras sobre as exportações de grãos decretado pela presidente Cristina Fernández de Kirchner e definido em termos de detalhes pelo ministro Louseau. (A preços atuais, as novas normas elevariam a 40% a alíquota do imposto sobre a soja argentina exportada.) A nova norma não abria quaisquer exceções, e se aplicava igualmente a um fazendeiro que explorasse propriedade mil hectares e a ao pequeno agricultor que cultiva 35 hectares. Grandes empresários dos agronegócios e pequenos fazendeiros estão sujeitos ao mesmo tratamento - aí, possivelmente, uma das chaves da questão.

O que são exatamente as retenções? Desde 2002, o governo vem cobrando impostos pela exportação de bens agropecuários, e nos últimos anos tem elevado a alíquota desses tributos, enquanto subiam os preços internacionais das matérias-primas. Essas retenções, que se aplicam igualmente aos combustíveis e aos minerais, representam 10% da arrecadação total do Estado. A influência das exportações oriundas dos campos argentinos é determinante: em 2007, elas responderam por 52% do total de vendas do país no exterior. Alguns outros dados reforçam essa interpretação: a Argentina é o maior exportador mundial de farinha e azeite de soja, o segundo fornecedor mundial de milho, o terceiro se sementes oleaginosas e o quarto de trigo e carne.

Cinco anos de crescimento econômico sustentado, de pelo menos 8% ao ano, não bastaram para deter essa explosão. Cerca de 100 mil pequenos agricultores cortaram as estradas dos pais e impediram a passagem dos caminhões que transportam leite, cereais, carne e alimentos. De suas casas, os ruralistas mais acomodados e as grandes empresas de comércio de sementes apoiaram os protestos. O governo nacional imaginou que os protestos, nascidos em terras tão distantes, não se expandiriam, dado o desgaste imposto pela passagem do tempo e pelos prejuízos econômicos que afligiriam as pessoas que optassem por deixar de trabalhar para sair à rua em protesto. Mas não foi isso o que aconteceu. E o discurso da presidente Fernández em 25 de março bastou para fazer o resto. A presidente demonstrou inflexibilidade, declarou que não aceitaria extorsão, e agrediu verbalmente os milhares de manifestantes que estavam nas ruas e nas centenas de milhares de telespectadores que assistiam ao discurso pela TV. "Esses são os piquetes da abundância", disse Cristina Kirchner, e os aplausos foram estrondosos na sede do governo. Do lado de fora, fora, porém, a indignação se espalhou como fogo em um rastro de pólvora.

Os cortes de estradas, que antes não chegavam a 50, logo ultrapassaram a marca dos 100 apenas na província de Buenos Aires (o total nacional ultrapassava os 200). Os moradores do campo tiveram de se impor nas estradas: houve tentativas de forçar os bloqueios, brigas, uso de gás lacrimogêneo e em determinados momentos até disparos de armas de fogo. Muitos dos caminhoneiros comandados pelo líder da central sindical CGT, Hugo Moyano, resistiram à detenção de seus veículos, e ainda mais à perspectiva de dormir na beira da estrada por alguns dias. Nas cidades do interior, a classe média saiu às ruas, de noite, para manifestar seu repúdio. Na capital, os manifestantes chegaram à Plaza de Mayo e tiveram de suportar os golpes de Luis D¿Elia, um piqueteiro com escritórios em um ministério nacional, e sua força de choque de militantes do partido. Com o passar das horas, a tensão cresceu a ponto de legisladores e governantes regionais peronistas terem decidido pedir ao governo que promova o diálogo. O país está paralisado. Ninguém sabe quando a Argentina voltará a funcionar.

Terra Magazine conversou com alguns dos homens e mulheres que saíram às ruas, e que continuam nas ruas, em apoio às queixas do campo, e recolheu seus depoimentos. Eis os protestos, em primeira pessoa:

Maria Monserrat Ibáñez, 45, estava com a panela na mão em uma esquina da avenida Santa Fe, no Barrio Norte, às 22h de um dia de semana. "Quero um país digno e um governo que não seja boquirroto. Especialmente se encabeçado por uma mulher que se tornou dona da Patagônia à custa de tanto roubar. Não tenho relacionamento algum com os pequenos agricultores: a única terra que tenho é a dos vasos que tenho na sacada do apartamento".

Raúl Victores, presidente da Sociedade Rural de San Pedro, à beira da rodovia 9, em uma tarde de sol sinistro e poucos dias antes da data marcada para uma cirurgia cardíaca - que ele teve de adiar por motivos evidentes: "Estão querendo apagar o fogo com gasolina. Não vivemos de presentes, vivemos de esforço. As pessoas estão se enfurecendo, e não vamos conseguir controlar as bases".

Armando Fernández, apoiado por sobre o capô de uma caminhonete que barrava a avenida Callao ao tráfego de veículos, na noite da quarta-feira: "Não vou à praça porque não quero ter de enfrentar D'Elia e seus capangas pagos. Há muitas mentiras: nós pagamos 3,50 pesos por litro de diesel, e o dólar para o campo não vale três pesos, mas 1,80".

Lisando Gordó, engenheiro agrônomo, 22, à beira da rodovia 9, em San Pedro: "Olhe as pessoas. Não temos oligarcas, aqui. Ninguém está aqui porque quer. Ninguém gosta de agir assim. Mas o governo quer ser nosso sócio nas horas boas enquanto nas más nunca aparece. Não se trata só das retenções. Elas foram apenas a gota d¿água que fez transbordar a insatisfação. Temos de discutir o modelo de país que desejamos. Com o dinheiro das retenções, seria preciso industrializar o país. E quem não entende do assunto não deveria falar da soja: foi ela que permitiu o desenvolvimento das áreas mais remotas do interior, nos últimos anos".

Néstor Roulet, vice-presidente das Confederações Rurais Argentinas, em meio a uma forte discussão com caminhoneiros em um tribunal da província de Córdoba, onde mil caminhões estavam paralisados. "As brigas e confrontos são todos boatos. Mas uma coisa é certa: a situação é quente".

Matías Saizar, dirigente rural em Gualeguay, no trevo de entrada para a cidade, onde confluem as rodovias 12 e 16, a apenas 70 quilômetros do acampamento de caminhoneiros de Moyano. "Primeiro promovemos o corte da doçura, no qual distribuíamos aos motoristas doces e um panfleto que explica nossa posição; depois, o corte da música, com a ajuda dos músicos da cidade; agora, estamos entregando pombas para que as levem à presidente, com o intuito de informá-la de que só queremos paz".

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